8/31/2007

MISTÉRIOS

Ilustração: Alice Jorge


O pescador veio do mar
Chegou de manhã
Trouxe uma rede
Cheia de peixes
Que pescara na noite

     Veio
     No seu barco
     Sozinho com os peixes
     Presos
     Na rede

E as estrelas no céu
     presas dormiam
     na luz da manhã
Quem come um peixe
     não sonha estes mistérios


Matilde Rosa Araújo (1988)

8/24/2007

Emoções e sentimentos nos peixes?



Discuti este ano com os meus alunos os textos de Peter Singer sobre a distinção entre ser humano e pessoa, no contexto da ética aplicada à caça dos cetáceos. Basicamente, Singer define “pessoa” como qualquer ser com consciência de si próprio enquanto entidade autónoma, com um passado e uma perspectiva de futuro. Paralelamente, discorre sobre o fundamento do direito à vida das pessoas. O seu raciocínio, cristalino e de difícil refutação, leva à conclusão de que qualquer pessoa tem direito à vida, independentemente da espécie a que pertença.

Pensadores despreconceituados e minimamente informados não terão dificuldade em admitir que os grandes símios devem ser incluídos nesta categoria, havendo até já batalhas legais sobre o assunto, como a do chipanzé Hiasl. A legião de admiradores dos cetáceos, entre os quais me incluo, não quererão ficar atrás [v. Marino, 2004]. E muitos donos de cães e de papagaios [v. tb. Emery & Clayton, 2005 e Emery, 2006], que podem contar histórias mais ou menos incríveis sobre a inteligência dos seus amigos não humanos, ficarão contentes em ver vindicados a sua dedicação e o seu amor.

Conferir o estatuto de pessoa a um animal não humano (repare-se na imediata necessidade de alterar a nomenclatura) tem, porém, implicações morais e, por consequência, económicas. De facto, se é pacífico e até in defender o direito à vida dos grandes símios, que dizer dos porcos, por exemplo? Imagine-se o que seria proibir, à escala planetária e por razões éticas, o abate de porcos! Claramente, esta é uma via em que é necessário prosseguir com cautela. E, a certa altura, definir uma linha: acima dela estarão as pessoas, humanas ou não, abaixo os animais não humanos. Uma minhoca, por exemplo, não é, claramente, uma pessoa. Nem uma estrela-do-mar. Mas, e um peixe?

Recentemente surgiram uma série de trabalhos nesta área, muitos dos quais felizmente disponíveis na internet. Destes sugiro:

Braithwaite & Boulcott, 2007. Pain perception, aversion and fear in fish. Diseases of Aquatic Organisms, 75: 131–138.

Chandroo et al., 2005. An evaluation of current perspectives on consciousness and pain in fishes. Fish and Fisheries 5: 281–295.

Lund et al., 2007. Expanding the moral circle: farmed fish as objects of moral concern. Diseases of Aquatic Organisms, 75: 109–118. [A expressão vem do livro de Peter Singer e é glosada, e.g., neste artigo de Albert Mosley]

Volpato et al., 2007. Insights into the concept of fish welfare. Diseases of Aquatic Organisms, 75: 165-171.

Aconselho sobretudo o excelente artigo de revisão de Leonor Galhardo e Rui Oliveira: Bem-estar Animal: um Conceito Legítimo para Peixes? Revista de Etologia 2006, 8(1): 51-61. Estes autores concluem que os peixes são sencientes, i.e., têm consciência de sensações e sentimentos. Sentem dor, têm medo, sofrem com o stresse. Não poderão ser considerados pessoas, mas (concluem estes autores):
"A existência de senciência confere aos peixes um estatuto moral com implicações éticas na sua protecção. Apesar de a legislação já englobar a protecção de todos os vertebrados, existem ainda inúmeras questões acerca do bem-estar de peixes que importa esclarecer, sendo a formulação de recomendações para a manutenção e tratamento destes animais em cativeiro uma necessidade cada vez mais pertinente."

Fica pois a pergunta: onde, na escala evolutiva dos peixes aos primatas, passa a linha que divide pessoas de não pessoas?